Represas de usinas, degradação e seca são pontos que explicam a situação, segundo pesquisadores
“Você olha e não acredita”. O pescador Renato Martins, 43, está impressionado com as condições do Rio Ivinhema. Míngua igual a outros de Mato Grosso do Sul, num ano de seca histórica.
Antes navegável, um trecho virou “praia” de pedras em Batayporã. Renato e os companheiros de pesca dizem nunca ter conseguido andar ali, como fazem hoje. Em outra parte, a água bate nos joelhos e dá para atravessar de uma ponta à outra sem barco.
Barco esse que tem dado prejuízo ao pescador e à pescadora Irene da Silva, 56. As pedras e os bancos de areia estão quebrando as hélices do motores. “Motor estragado é uma ‘pancada’ para consertar”, fala Renato, isso sem falar no risco de acidentes.
Irene mora em Nova Andradina e vive à beira do Rio Ivinhema desde nascida. Testemunha que a fartura de água e peixes está diminuindo ano a ano. Relata que viu secura abaixo da ponte da rodovia MS-141, além de ver escassez de água no afluente Rio São Bento e no Córrego Papagaio. “É uma tristeza muita grande”, comenta.
Os culpados, para os pescadores – Renato, Irene e também Nelson Gouvea, 41, associam o que veem, principalmente, às atividades da Usina Hidrelétrica Sérgio Motta, conhecida como Porto Primavera. A pescadora vê que mudanças acontecem no nível das águas e na biodiversidade dos rios desde os anos 2000, quando a indústria geradora de energia elétrica foi instalada.
“Vem só acabando. De quatro anos para cá, fecharam as comportas e piorou a situação. Peixe tem bastante. Mas com o nível da água assim, vai atrapalhar a piracema”, complementa Renato.
A situação é a mesma observada em outros afluentes da Bacia Hidrográfica do Paraná, como o Dourados, o Vacaria e o Brilhante, por exemplo.
Outro fator que os pescadores relacionam à situação é ter chovido menos na época de cheia e a estiagem e altas temperaturas predominarem nos meses seguintes. Análise do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), confirma a impressão, apontando que a seca é histórica e nunca houve uma tão extensa no País quanto a de 2024.
Desmatamento que deixa “barrancos pelados” às margens do rio, abertura irregular de valetas em fazenda, além da presença de gado em área de preservação é o que Nelson mostra em vídeos gravados para registrar que “a natureza pede socorro”. Ele também acredita que as usinas de cana-de-açúcar na região ameaçam o patrimônio que o rio representa para as famílias de pescadores e para o equilíbrio ecológico.
O que dizem pesquisadores – Professor da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) e pesquisador de ambientes naturais, Yzel Rondon Súarez afirma que a baixa vazão do Ivinhema e dos demais rios da Bacia Hidrográfica do Paraná pode ter duas causas centrais: a falta de chuva e o controle de inundações em represas, que não ocorre apenas na usina hidrelétrica apontada pelos pescadores.
“Primeiro, existe uma variabilidade natural entre os anos, ou seja, alguns são mais chuvosos e outros mais secos e isso interfere no nível dos rios. Segundo, os represamentos existem para produzir energia elétrica, mas alguns são utilizados também para ‘controlar’ inundações, como foi o caso da represa de Manso, logo acima de Cuiabá (MT)”, começa.
A maioria das represas têm o objetivo produzir energia elétrica. Precisam reter a água para manter a produção no período de seca. É o que a assessoria de imprensa da administradora da Porto Primavera já afirmou ao Campo Grande News que está sendo feito, por determinação do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e do Ministério de Minas e Energia.
“Mas esse processo interfere no ritmo normal das cheias e secas e, consequentemente, na piracema, já que os peixes evoluíram para se reproduzir com o início do período de chuva. Assim, os pescadores estão certos em dizer que as represas são parcialmente responsáveis pela redução dos peixes e mesmo pelo nível dos rios, mas não se pode colocar a culpa em apenas uma represa, já que existem dezenas de outras represas acima de Porto Primavera, cada uma retendo um pouco de água”, continua Yziel.
O professor acredita que a degradação de áreas que servem à pecuária também colaboram negativamente. “A abertura de valetas foi observada em Ivinhema, Amambai e Iguatemi para secar a área de várzea e converter em pasto. E isso realmente afeta o ritmo das cheias”, diz.
“No trecho entre Porto Primavera e Itaipu temos o último trecho do Alto Rio Paraná praticamente sem represamentos. Temos apenas duas pequenas represas no Rio São João, afluente do Rio Dourados em Ponta Porã e uma em Lagura Carapã, na bacia do Rio Amambai. Então, estas bacias (Ivinhema, Amambai e Iguatemi) são aquelas que ainda permitem que ocorra a piracema”, relaciona o pesquisador. Há aproximadamente 200 espécies de peixes registradas na região, ele destaca.
A lista de questões não para por aí. Yziel cita ainda o cultivo de cana e a presença de lavouras que não eram comuns anteriormente, além da possível “entrada de contaminantes nos rios da bacia e baixo percentual de tratamento de esgoto” nas cidades próximas.
Ele defende que “as usinas, ao menos a Porto Primavera, diminua o controle sobre a vazão da água, permitindo que as cheias ocorram mais próximas ao ritmo natural”. E finaliza. “Do ponto de vista da empresa, isso representa abrir mão de receita, retendo menos água, mas o ganho ecológico e social é muito grande, já que muitas famílias dependem direta e indiretamente o funcionamento adequado deste ritmo de inundação nos nossos rios”.
O professor Hugo Message, da UEM (Universidade Estadual de Maringá), estudou os efeitos a longo prazo das barragens de Itaipu e de Porto Primavera sobre os peixes dos rios Paraná, Baía e Ivinhema. Sobre a situação atual, ele também liga a diversos fatores.
“A operação da usina de Porto Primavera é um dos principais. Há algumas décadas, estão sendo documentadas mudanças na quantidade de dias que chove seguidamente e na quantidade de água que cai em determinadas épocas do ano. As estações do ano já não estão bem marcadas como era antigamente. Em alguns anos sim, mas, na maioria, não. Isso não tem a ver com a usina, mas sim com destruição de florestas e aumento da área de solo sem cobertura vegetal, o que muda a temperatura local que, por consequência, muda o ciclo da água. Isso tem ocorrido localmente, como podemos ver em algumas regiões do Brasil, mas também em escala continental”, detalha.
Causas locais citadas pelos pesquisadores e por Yziel também estão associadas, segundo Hugo. “As valetas são sistemas de drenagem para evitar alagamentos indesejados, mas pode trazer efeitos negativos junto a isso. Elas diminuem a quantidade de áreas úmidas, como brejos e varjões, diminuindo a capacidade da terra reter água, água esta que iria, por dentro do solo, abastecer os riachos e depois os rios vizinhos. Valetas podem existir, mas em número excessivo causam impacto na disponibilidade de água, sim”.
Quanto ao desmatamento, ele comenta como contribui para a seca nos rios. “A mata ciliar tem duas funções principais para a saúde hídrica de um rio: deixa água chegar até ela ao mesmo tempo que evita que ele se encha de terra e areia. Desmate a mata ciliar que essas proteções deixam de existir”, fala.
Sobre o Rio Ivinhema, o professor da UEM frisa que é extremamente para a Bacia do Paraná e para a economia regional. Cita o Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema, que, é “guardião” das áreas que servem como área de reprodução de peixes, inclusive o comercial pintado, o protegido dourado e o ameaçado de extinção, piracanjuba.
Fonte: Campograndenews