O Janeiro Branco tem como objetivo chamar a atenção para os cuidados com a saúde mental, e é evidente que para pessoas negras a saúde mental é ainda mais fragilizada. Mulher, negra e carioca, a psicóloga clínica Shenia Karlsson, co-fundadora do Papo Preta: Saúde e Bem-estar da Mulher Negra, admite que as pessoas negras vivem em um estado de estresse permanente por causa do racismo, e isso afeta diretamente a qualidade de vida mental.
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“A saúde enquanto estrutura de cuidado não foi forjada para atender os corpos e mentes de pessoas pretas e o racismo interfere diretamente na forma como somos acolhidas, cuidadas e olhadas. Como o corpo da mulher negra carrega muitos estigmas historicamente construídos e consequentemente violências são direcionadas aos nossos corpos, a mulher negra têm sido sistematicamente desumanizada quando o assunto é saúde. Em termos de saúde mental segue-se a mesma lógica. Mulheres negras encabeçam os índices oficiais em termos de desigualdades de direitos e acessos, o ônus é o adoecimento em várias dimensões, principalmente a dimensão psicológica e dentre elas a mais negligenciada”, explica.
O Papo Preta já atendeu 7 mil pessoas gratuitamente, prova de que a demanda existe, o que não há é um olhar para essa população. Shenia diz que o projeto foi criado despretensiosamente, mas ganhou repercussão na medida em que elas se aliaram a instituições e puderam levar a ideia a outros grupos de mulheres negras. “Viajamos o Brasil inteiro dado palestras, acolhimento, ganhamos dois prêmios”, lembra a profissional. Há dois anos, Shenia se mudou para Lisboa, em Portugal, e ficou supresa com a acolhida. Ela entrou em contato com ativistas locais e não demorou para integrar o Instituto da Mulher Negra de Portugal. “Para minha surpresa, os movimentos sociais souberam da minha presença, e tive muita demanda rapidamentea. Aqui, como no Brasil, não se falava em saúde mental para a população negra. Hoje eu digo que pratico clínica da diversidade, são públicos que a literatura conceitua como corpos não normativos, mais expostos à violência social”, conta.
A questão da saúde mental é um guarda-chuva enorme, do qual a psicologia clínica é uma faceta, segundo Shenia. E o racismo, por ele se apresentar desde formas sutis até violências mais diretas, produz estresse o tempo inteiro, sobretudo em sociedades eurocentristas, nas quais a saúde foi pensada para atender um certo grupo social.
“Em termos gerais, a saúde não contemplou a populaçao negra, e ainda menos nas questões da psicologia. A população negra vivia no pós-abolição um fenômeno conhecido como banzo, adoeciam de saudade da terra natal, da liberdade. Era uma depressão”, explica a terapeuta.
“O impacto do racismo também depende de onde a pessoa negra se localiza socialmente, se é uma mulher negra da periferia, que vive em perigo iminente de trocas de tiro, é muito mais impactada”, aponta Shenia. O racismo traz uma carga de exaustão, pois existe um marcador social, que é a cor da pele, que define os lugares que os sujeitos podem ocupar, muito diferente do modelo socialmente construído para brancos.
Para Shenia, apesar dos movimentos, a saúde mental é um projeto coletivo, e na medida em que exclui a população negra, a sociedade adoece. “Assim é o racismo: a violência volta para a sociedade. É uma violência que permeia a vida das pessoas comuns, como o genocídio de 70 mil jovens negros por ano, são 70 mil mães suscetíveis a isso.”
Essa iminência de não existir muitas vezes, segundo a psicóloga, empurra os jovens negros para o crime, porque eles acham que não vão viver muito.
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No Papo Preta hoje é feito um direcionamento para uma rede privada, com profissionais qualificados, disponíveis e dispostos, para fazer uma intervenção presencial ou online. Em Portugal, as questões também se acentuam. “É uma sociedade que não se vê racista, mas tem uma enorme necessidade de hierarquizar as relações e são bem hostis. Aqui eu atuo em grandes casos, de repercussão em toda a Europa, recebo os familiares ou a pessoa vítima da violência”, analisa Shenia, que chama seu consultório de quilombo.
“O quilombo era o lugar onde os meus ancestrais se refugiavam, um lugar de acolhimento, onde a pessoa terá contempladas suas demandas, vai poder existir em sua plenitude, para colocar raiva, os ressentimentos, as dores pra fora”, explica. Somos, segundo Shenia, forjados por nossas experiências, e quando alguém minimiza um episódio de racismo, dizendo que a pessoa está exagerando, na verdade ela está sendo colocada em um lugar de inexistência.
“Saude mental é política, no sentido de ser sujeito pleno, de existência”, conclui a psicóloga.
Fonte: IG Mulher