Em casa menonita, ninguém fala português, todos usam macacão, mas já rola tereré

01/03/2016 15h50

Em pleno Centro da cidade, em Campo Grande, uma casa virou república de menonitas que não falam português e veem de longe em busca de tratamento médico.

Em uma das travessas entre as ruas Antônio Maria Coelho e Cândido Mariano, o varal da casa chama atenção pelas roupas penduradas: todos macacões azul escuro, imitando jeans, atrás da roda de tereré formada com cadeiras de fio. Em pleno Centro da cidade, em Campo Grande, uma casa virou república de menonitas que não falam português e veem de longe em busca de tratamento médico.

A cultura é pautada na religião derivada da mesma época da Reforma Protestante. Descendentes de alemães e holandeses, a cor da pele, dos cabelo e dos olhos “entrega”, além do visual, que ali está um povo diferente e que só fala o alemão.

O Lado B chegou ao portão da garagem que está sempre aberto, nesta semana. Depois de já ter visto alguns deles circulando pela região. Num primeiro contato, quem entende pouco do português é porque fala espanhol, mas pede a equipe que retorne em 1h para conversar com um deles, que é quem fala melhor a nossa língua.

A entrevista é feita com Peter Fehr Buhler, um simpático senhor, que usa chapéu, macacão azul escuro e camisa de manga comprida. Num “portunhol”, ele se apresenta como menonita nascido no México e missionário em Campo Grande. Há três anos surgiu o primeiro contato com as colônias – espécie de fazendas onde os menonitas moram em comunidade, sem depender de qualquer ajuda do Governo – da Bolívia e Paraguai, quando ele foi contratado para ser tradutor no Hospital de Câncer de Barretos, em São Paulo.

Quando o hospital lotou deles, direcionou alguns para o tratamento na Capital e é assim que menonitas viraram pacientes aqui, desde agosto de 2014. Os homens chegam para tratar câncer de pele e as mulheres, de mama ou ovário.

“Somos descendentes de alemães ou holandeses, mas alguns já são nascidos na Bolívia, quase todos tem fazenda na Bolívia”, conta Peter.

Segundo o missionário, são 43 colônias no país fronteira com Mato Grosso do Sul e em cada uma delas, a população varia entre 1 mil até 4 mil. “Na Bolívia não tem tratamento suficiente para o câncer, eles acharam, viram aqui no Brasil um tratamento melhor”, completa.

A casa é alugada e foi toda mobiliada pelo que Peter descreve como sendo a “Central Menonita”. Em sete quartos moram em torno de cinco famílias. Com os dois que chegariam na noite passada, subia para 20 o número de hóspedes, todos iguais.

“Os menonitas surgiram em 1554, quando um pastor começou a crer no Novo Testamento. Ele era nascido na Alemanha, mas se refugiou na Holanda, porque na Alemanha não gostaram dessa nova tradução dele”, explica Peter, sobre o início da religião. Também por este motivo é que o povo se divide entre dois idiomas: o alemão e o que o missionário chama de “alemão/holandês”.

Sobre a cara de “poucos amigos”, da roda que nos recebeu lá na frente, ele diz que os menonitas são mais tímidos, diferente dele. A casa serve de abrigo e quando os pacientes se curam ou recebem alta, retornam às colônias. O imóvel tem menonitas da Argentina, Paraguai e da Bolívia. “Eles voltam, avisam e vem outra gente”, completa Peter.

As vestimentas são de acordo com os costumes. “Vem de muitos anos atrás, é uma tradição alemã. Menonita acha que tem que usar roupa de trabalho, por isso um macacão, para trabalhar, cheio de bolso”, descreve. Para as mulheres, vestidos longos e sempre escuros. Na cabeça, lenço na cor preta que é para avisar de longe que ali está uma mulher casada, quando solteiras, elas usam branco. No entanto, a cor é bem definida entre essas, porque não há divórcio entre os menonitas.

A casa é de adultos, apesar de terem filhos, as crianças costumam ficar na colônia enquanto os pais seguem com tratamento aqui, parte deles no Hospital do Câncer. “Só 20%, do mais grave, eu trato aqui, mas ninguém aceita, porque tem que fazer documentação e só com cartão do SUS. A nossa central manda dinheiro como doação para o hospital, então parte deles é tratada assim”, explica Peter. O restante, é por meios particulares.

Mas a documentação parece que não será empecilho, em breve. “Os menonitas estão procurando terra aqui, para formar uma comunidade”, adianta Peter. Pelas contas dele, no país vizinho e da onde a maioria dos hóspedes da casa é, na Bolívia, há 23 anos as colônias chegaram ao país. “Não são comunidades porque não dependem de governo, a colônia é como de abelha, não depende dos outros, só deles. A colônia procura fazer tudo só, tudo o que usamos para comer: leite, mandioca, batata, é tudo nosso. Quase todos não precisam comprar nada”, explica Peter.

Na república se nota a presença de eletrodomésticos, como geladeira, fogão e forno e também ventiladores. Entre a tecnologia, apenas um velho aparelho celular nas mãos de Peter. Na colônia, é proibido. São poucos os que possuem e ainda assim, bem antigos que não suportam nem aplicativos como WhatsApp.

A cozinha é comunitária e dela saía um cheiro delicioso de bolo. Duas assadeiras acabavam de sair do forno, com chocolate e outro de baunilha. As vestimentas longas e escuras contrastavam com o tom de pele de Katharina Banman de Wieler, menonita de 42 anos, que está em Campo Grande desde agosto do ano passado, acompanhando o marido no tratamento de câncer de pele.

Com a tradução de Peter, conseguimos conversar com ela. Nas palavras dele, foi só depois do Natal que a família se acostumou com o calor daqui. Quanto às saudades, ela diz sentir “muita” da colônia e que quer voltar logo. O marido, De Wieler, também de 42 anos, fala português e se mostra aberto para conversar.

Pais de crianças que vão dos 4 até os 19 anos, ele conta que deixou os filhos na colônia e que gosta de Campo Grande. Sempre passeando, entra como hobby também as idas ao mercado, em especial ao “Extra”, nome que ele responde como primeiro local.

O tereré da roda é bebido tanto lá fora na garagem, quanto dentro de casa. Eles já têm familiaridade com a bebida na colônia, por influência paraguaia. Sobre a comida, não há reclamação e Peter explica o por quê. “A comida brasileira é muito boa para o menonita. Lá no Bolívia não usa feijão, aqui usa. As casas também, são como no México. Nós só cozinhamos em casa, não vamos a restaurante, porque não estamos acostumados com condimentos. Usamos menos na comida”, explica.

O trabalho dele é o de traduzir o alemão falado pela maioria nas consultas e também manter as famílias financeiramente. Sobre se tornar menonita, ele ri da pergunta. “Se pode se tornar? Muita gente já experimentou, mas ninguém aguenta, porque eu vou falar, você tem uma vida mais livre, eu tenho uma vida mais humilde, fechada, na igreja”, compara.

No Hospital do Câncer, são três dos menonitas atendidos, com câncer de pele, mama e ovários. Um quarto já está a caminho e deve começar a receber o tratamento também nesta semana. Na hora de pegar no tereré, é que eles se abrem mais e aceitam ser fotografados.

Fonte: Campograndenews

Roda de tereré na garagem de casa reúne os homens menonitas. (Foto: Fernando Antunes)