Em 10 anos, mais de 4 mil crianças e adolescentes viraram mães em MS

Foto: Reprodução/TV Brasil

Violência, vulnerabilidade social e desconhecimento do próprio corpo estão por trás do número

Meninas que engravidam após um estupro têm o direito de fazer um aborto legal no Brasil a qualquer momento da gestação. Ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, projeto de lei propõe mudar isso ao equiparar o aborto ao crime de homicídio.

O total de 4.521 meninas de até 14 anos foram mães em Mato Grosso do Sul nos 10 anos de intervalo entre 2013 e 2023, de acordo com dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos do Ministério da Saúde. Este ano já foram registrados 87 nascimentos assim no mesmo sistema.

Os números revelam falha no acesso ao direito de interromper a gestação no Estado, aponta Patrícia Ferreira da Silva, assistente social do Serviço de Atenção ao Aborto Legal e Violência Sexual do único local autorizado para o procedimento, o Humap (Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian).

Em 10 anos, mais de 4 mil crianças e adolescentes viraram mães em MS
Arte: Bárbara Campiteli

Ela lembra que meninas nessa faixa etária geralmente são vítimas de violência sexual praticada por alguém da própria família e são de classes sociais baixas, na maioria dos casos. “Para piorar, sequer compreendem que o ato sexual é considerado estupro”, diz.

O drama pode começar nos abusos da infância e passar pela descoberta tardia da gestação, já que mudanças no corpo normais na pré-adolescência costumam ser confundidas. “Acham que engordaram ou que o corpo está mudando por uma questão natural do crescimento”, conta Patrícia, a partir da experiência no serviço do Humap.

O projeto que tramita na Câmara pode tornar crime o aborto feito em caso de estupro a partir da 22ª semana de gestação, o equivalente a 5 meses e meio. O problema é que justamente nesse estágio, os sinais ficam mais evidentes para as meninas ou para alguém próximo perceber.

“Até entenderem ou alguém próximo falar, elas já estão acima das 20 semanas. São crianças ou adolescentes que não entendem como o corpo está funcionando. Algumas acreditam que estão engordando, não entendem que aquele ato foi uma violência sexual, um crime”, relata a assistente social.

A mudança pode vulnerabilizar ainda mais a criança e a adolescente, implicando em muito mais chances de morrer. Patrícia cita a hemorragia pelo acesso a métodos abortivos arriscados; complicações da própria gravidez em um corpo não totalmente desenvolvido para gestar; e até o suicídio.

Patrícia é contra o avanço do projeto de lei. “As mulheres estão sendo cada vez mais penalizadas. Elas são muito julgadas. O aborto nunca é uma escolha fácil. Ela está escolhendo o que socialmente e emocionalmente terá menos impacto”, finaliza.

Violência – A Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública) registrou que 9.259 crianças de até 11 anos sofreram estupro em Mato Grosso do Sul entre 2014 e o momento atual. De acordo com o Código Penal, ter relação sexual com menor de 14 anos é crime de estupro de vulnerável, mesmo que seja alegado consentimento.

Doutora em serviço social e membro da rede feminista de saúde em Mato Grosso do Sul, Estela Scandola destaca que o número não representa a realidade e que há muitos outros casos não denunciados para proteger quem mais comete esse tipo de violência.

“Para defender o homem, é normalizada a violência contra a criança. A estrutura adultocêntrica e machista presente em instituições como a própria família, igrejas e até no setor público ajuda. Existe uma ideia de que eles são incontroláveis e que as mulheres têm que pagar com seus corpos o descontrole masculino. As crianças são as mais violentadas nesse contexto, para se manter uma certa harmonia na sociedade que protege o estuprador e não a vítima”, analisa.

De 1º de janeiro até 12 de maio deste ano, as denúncias de violação sexual contra crianças e adolescentes já somavam 176 em Mato Grosso do Sul. O número é do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Ele apresenta registros do Disque 100 feitos a partir de relatos por ligação, mensagem de WhatsApp e e-mail. As vitimas têm entre 2 e 17 anos.

Estela também se manifesta contra o projeto de lei. “É muito dolorido a gente ver que ele impõe ao aborto entre meninas uma pena maior que a do estupro. A gente começa a pensar que está na Idade Média. Estão sendo colocados valores que definem a não proteção das meninas”, pontua.

Fonte: Campograndenews